Bilhões de reais sumiram em 2023 e 2024 em golpes envolvendo transferências digitais. Agora, o Banco Central tenta virar o jogo: a Resolução 493, publicada em 28 de agosto de 2025, muda de forma profunda o Mecanismo Especial de Devolução (MED) do Pix e dá mais tempo e ferramentas para recuperar dinheiro roubado.
O que muda nas regras do Pix
Desde 2021, o MED permite pedir o reembolso quando há fraude. Só que havia um gargalo: a devolução dependia do saldo da primeira conta que recebeu o dinheiro. Criminosos sabem disso e esvaziam essa conta em minutos, pulverizando os valores por uma sequência de contas “laranja” até inviabilizar o estorno.
Com a Resolução 493, o rastreamento passa a acompanhar o caminho do dinheiro por toda a cadeia, incluindo contas intermediárias e diferentes instituições. O sistema ganha fôlego: por até 11 dias após o registro da queixa, as transações ligadas ao golpe podem ser mapeadas, sinalizadas às instituições envolvidas e ter valores bloqueados para posterior devolução.
Essa trilha não fica restrita a um banco ou fintech. Os dados essenciais do caso — identificadores de transação, contas de passagem, horários e montantes — serão compartilhados entre as instituições participantes. Na prática, um banco que identificar que o dinheiro passou por sua base, mesmo que por pouco tempo, poderá congelar os valores remanescentes e colaborar com o estorno.
O Banco Central fala em ganho duplo: mais contas usadas por fraudadores serão identificadas e, ao mesmo tempo, sobe a taxa de sucesso na recuperação dos valores. O compartilhamento padronizado também cria um histórico auditável, reduz lacunas entre sistemas e dificulta a reciclagem de contas “descartáveis”.
Outra mudança relevante está no atendimento. A abertura da denúncia deixa de depender do chat ou telefone com o atendimento humano e passa a ser feita direto no aplicativo do banco ou da fintech. O fluxo será guiado: o usuário descreve o golpe, anexa evidências (prints, boletim de ocorrência, se tiver), confirma horários e recebe um protocolo. Esse registro dispara, automaticamente, o rastreamento e os avisos às instituições na cadeia da transação.
O cronograma foi desenhado para evitar soluços operacionais. A adoção é opcional a partir de 23 de novembro de 2025. Em 2 de fevereiro de 2026, vira obrigatória. O BC espera que parte do mercado entre antes do prazo, justamente para oferecer a proteção ampliada durante a alta temporada de consumo no fim do ano.
As mudanças atendem a pedidos apresentados pela Febraban desde 2024: respostas mais ágeis, padronizadas e com melhor trilha de auditoria. O objetivo é atacar o ponto fraco que vinha favorecendo a impunidade: a velocidade de dispersão do dinheiro roubado.
- Rastreamento multi-instituição: segue o dinheiro por diferentes bancos e fintechs.
- Janela de 11 dias: tempo para mapear e bloquear valores em contas intermediárias.
- Bloqueio coordenado: instituições da cadeia podem congelar saldos remanescentes.
- Denúncia pelo app: protocolo automático e coleta guiada de evidências.
- Compartilhamento de dados de fraude: padrão único, com logs auditáveis.
O desenho técnico conversa com rotinas já usadas em prevenção à lavagem de dinheiro: marcação de transações suspeitas, encadeamento de operações e análise de comportamento. A diferença é a padronização nacional e a finalidade específica de estorno no contexto do MED, agora mais efetivo contra a atomização de valores.

O que muda para usuários e para os bancos
Para quem usa o Pix, o impacto é direto: a chance de recuperar o valor aumenta, inclusive quando o golpista faz transbordo para várias contas. A regra, porém, continua a mesma em um ponto crucial — agir rápido. Quanto antes a denúncia é aberta no app, mais fácil é travar o dinheiro no começo da cadeia.
- Se cair em golpe: abra a queixa no app do seu banco ou fintech imediatamente.
- Descreva o caso: informe horários, valores, tipo de golpe e anexe prints.
- Guarde o protocolo: é ele que aciona o rastreamento nas instituições.
- Acompanhe pelo app: o andamento deve aparecer no mesmo canal.
Para as instituições financeiras, a mudança é estrutural. Será preciso integrar sistemas antifraude e de backoffice ao novo padrão do MED, criar esteiras de bloqueio para contas intermediárias e reforçar o case management (gestão de casos) para cumprir prazos e registrar decisões. Bancos e fintechs vão ter de harmonizar políticas internas para evitar dois riscos: travar pouco e perder dinheiro, ou travar demais e afetar clientes legítimos.
- Integração tecnológica: APIs, trilhas de auditoria e interoperabilidade entre bancos e fintechs.
- Orquestração de bloqueio: regras claras para congelar e liberar valores em cadeia.
- Governança e compliance: decisões justificadas, registradas e auditáveis.
- Treinamento de equipes: atendimento, fraude, jurídico e tecnologia na mesma página.
O uso de contas “laranja” e o fracionamento de valores continuam no radar. Golpes comuns — como engenharia social com falso suporte, clonagem de WhatsApp, QR Code adulterado ou coação presencial — devem perder eficiência quando a cadeia de repasses passa a ser rastreada de ponta a ponta. Mesmo que o fraudador tente quebrar o rastro em várias partes, a janela de 11 dias dá tempo para reconectar os pontos e travar o que restar.
Como isso funciona no dia a dia? Pense num caso típico: a vítima faz uma transferência, percebe o golpe e registra a queixa no app. O sistema, então, marca a transação original e segue o dinheiro. Se ele saiu da conta inicial para duas outras, e dessas para mais três, cada instituição que tocar nesse fluxo recebe o alerta. Saldos ainda não movimentados podem ser congelados, e a cadeia inteira fica visível para decidir o reembolso ao final da análise.
Há desafios. O mercado terá de ajustar modelos de risco para reduzir falsos positivos e evitar bloqueios indevidos. Também será necessário criar caminhos claros de contestação quando alguém for afetado por engano, com prazos e transparência. A padronização exigida pelo BC tende a ajudar nessas fricções, mas a execução dirá o quanto cada instituição conseguirá equilibrar proteção e conveniência.
Do lado do consumidor, outro ponto prático: mesmo com mais chances de reaver o dinheiro, prevenção continua sendo a melhor defesa. Desconfiar de ligações de “suporte” pedindo transferências, conferir nomes e dados antes de enviar valores e ativar limites noturnos e de valor no app do banco seguem como medidas básicas.
O Banco Central aposta que a combinação de rastreamento ampliado, cooperação entre instituições e denúncia automatizada reduz o apelo econômico do golpe. Quanto mais difícil for sacar e circular o dinheiro roubado, menor o incentivo para essas quadrilhas. Com o MED turbinado, a segurança do sistema dá um salto sem mexer na proposta central do Pix: transferência instantânea, a qualquer hora, com custo baixo.
Até fevereiro de 2026, todo o mercado terá de estar pronto. A fase opcional, a partir de 23 de novembro de 2025, servirá como teste em produção: integração técnica, ajustes finos nas regras de bloqueio e calibragem dos times de fraude. A expectativa é que parte dos bancos e fintechs antecipe a adoção para atravessar o fim de ano com uma proteção mais robusta — e clientes mais confiantes.
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