A Câmara dos Deputados aprovou nesta terça-feira, 18 de novembro de 2025, uma emenda que tira o direito de voto de pessoas presas provisoriamente — um movimento que afeta cerca de 320 mil brasileiros e reacende um debate antigo sobre cidadania, justiça e democracia. A mudança, incluída no Projeto de Lei 5582/2025 (PL Antifacção), foi aprovada por 349 votos a favor, 40 contra e uma abstenção, em sessão no Palácio do Congresso Nacional, em Brasília. A proposta, originalmente do deputado Marcel van Hattem (Novo-RS), agora faz parte do substitutivo do relator Guilherme Derrite (PP-SP), e determina o cancelamento automático do título de eleitor de quem está sob custódia antes da condenação definitiva.
"Preso não pode votar. É um contrassenso"
Van Hattem, que ocupa a cadeira na Câmara desde 2019, foi claro: "O voto é expressão da plena cidadania, pressupõe liberdade e autonomia de vontade, condições inexistentes durante a custódia." Ele comparou o direito de voto de presos provisórios a "uma regalia" — algo que, segundo ele, não combina com a realidade de alguém privado de liberdade. "Não faz sentido o cidadão estar afastado da sociedade, mas poder decidir os rumos da política do seu município, do estado e até do Brasil."
Na prática, a emenda não altera a presunção de inocência — como ressaltou o próprio relator Derrite. "A suspensão temporária do voto não antecipa penas, nem ofende a Constituição. É apenas um reconhecimento de um limite fático e moral da cidadania, imposto pela própria restrição de liberdade." Ou seja: não é punição, é ajuste de status. Mas o efeito é o mesmo: se você é preso antes do julgamento, seu nome sai da lista de eleitores. E não volta automaticamente se for absolvido.
Quem votou contra — e por quê
Os partidos que se opuseram à medida — PSOL, Rede Sustentabilidade e alguns integrantes da coalizão governista — argumentaram que a medida é simbólica, mas perigosa. "Estamos criminalizando a pobreza", disse a deputada Talíria Petrone (PSOL). "A maioria dos presos provisórios são jovens negros, sem recursos para pagar fiança. Tirar o voto deles é tirar a voz de quem mais precisa ser ouvido."
Segundo o Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), 40% dos cerca de 800 mil presos no Brasil estão em regime provisório. Muitos aguardam julgamento por anos — alguns até mais de cinco. Eles não são condenados, mas já são tratados como se fossem. "Isso não é justiça. É prevenção social", disse o jurista Luiz Eduardo de Almeida, da USP, em entrevista. "A Constituição protege o direito ao voto como um pilar da democracia. Não podemos criar exceções baseadas em suposições."
O que muda na prática?
Hoje, os presos provisórios têm direito a votar — mesmo que seja difícil. Em 2022, apenas 3% deles compareceram às urnas, segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Mas o direito existia. Agora, ele é extinto. O cancelamento do título será feito automaticamente pelo TSE assim que o sistema de dados do DEPEN informar a prisão.
Além disso, o projeto prevê outras mudanças drásticas: penas de até 66 anos para líderes de facções criminosas, transferência obrigatória para presídios federais de segurança máxima para quem for considerado parte do "núcleo de comando" — mesmo sem condenação — e a perda do auxílio-reclusão para familiares de presos provisórios. Também há uma cláusula polêmica: bens apreendidos durante investigações passam a ser transferidos definitivamente ao Estado, mesmo antes da condenação final.
Por que isso importa?
Porque não é só sobre voto. É sobre quem é considerado cidadão. O Brasil tem uma das maiores populações carcerárias do mundo — e a maior taxa de prisões provisórias da América Latina. Tirar o direito de voto de 320 mil pessoas, muitas delas sem culpa ainda comprovada, é um sinal: o Estado está decidindo que a privação de liberdade é sinônimo de exclusão política. Isso pode parecer lógico para quem vê o preso como "inimigo". Mas para quem vê a democracia como um sistema que deve proteger até os mais vulneráveis, é um passo atrás.
Na prática, a medida também reduz custos: o TSE gastou R$ 12,7 milhões em 2022 para instalar seções eleitorais em presídios. Com a emenda, esses gastos desaparecem. Mas será que a economia vale o preço democrático?
O que vem a seguir?
Agora, o projeto segue para o Senado Federal. Lá, precisará ser aprovado em dois turnos — e enfrentará resistência de senadores ligados a direitos humanos e de estados com alta população carcerária, como Bahia e Pernambuco. O presidente Lula ainda não se manifestou oficialmente, mas fontes próximas à Casa Civil indicam que ele pode vetar trechos, caso o texto chegue à sua mesa. A expectativa é que a votação no Senado ocorra entre abril e junho de 2026.
Se aprovado, a medida entra em vigor 120 dias após a sanção. Mas já há movimentos no Supremo Tribunal Federal (STF) para questionar a constitucionalidade da emenda. Um pedido de liminar foi protocolado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no dia seguinte à aprovação na Câmara. O que acontecerá nos próximos meses pode definir não só quem vota, mas quem é considerado parte da sociedade.
Contexto histórico
Em 1988, a Constituição brasileira garantiu o voto a todos os cidadãos maiores de 16 anos, exceto analfabetos e condenados com sentença definitiva. Presos provisórios foram mantidos na lista — por uma razão simples: ninguém é culpado até que se prove o contrário. Essa lógica foi mantida por décadas, mesmo em tempos de alta violência. Em 2009, o STF rejeitou uma tentativa semelhante de suspender o voto de presos. Agora, 16 anos depois, a Câmara mudou o jogo.
Países como Estados Unidos, Canadá e Alemanha têm regras diferentes: nos EUA, a maioria dos estados retira o direito de voto de condenados, mas não de presos provisórios. Na Alemanha, todos votam — mesmo os presos. O Brasil, com sua cultura de punição e estigmatização, está indo na direção oposta à maioria das democracias avançadas.
Frequently Asked Questions
Como isso afeta os presos provisórios que ainda não foram julgados?
Eles perderão automaticamente o título de eleitor assim que seu nome for registrado no sistema do DEPEN. Mesmo que sejam absolvidos depois, o voto não é restabelecido automaticamente — precisam recadastrar-se como qualquer cidadão que perdeu o título. Isso cria uma barreira burocrática que pode desincentivar o retorno à vida política.
A emenda viola a presunção de inocência?
O relator garante que não, porque a suspensão é temporária e não é uma pena. Mas juristas apontam que, na prática, o efeito é o mesmo: alguém que ainda não foi condenado é tratado como se já fosse culpado. Isso desafia o princípio constitucional de que ninguém é considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença.
Quem mais será afetado por essa mudança?
Familiares de presos provisórios perdem o direito ao auxílio-reclusão, mesmo que o preso não tenha sido condenado. Além disso, comunidades pobres, especialmente em periferias, tendem a ter mais presos provisórios — o que significa que regiões inteiras podem ficar silenciadas nas eleições, reduzindo sua representatividade política.
O que acontece se o Senado rejeitar a emenda?
Se o Senado não aprovar, o texto original do PL Antifacção volta a ser o vigente — sem a proibição de voto. Mas a pressão política para manter a mudança é alta. Mesmo que seja rejeitada, a proposta já deixou marcas: o debate foi normalizado, e futuras tentativas de restringir direitos políticos podem surgir com mais facilidade.
Existe alguma chance de o STF derrubar essa emenda depois que ela virar lei?
Sim. A OAB já protocolou pedido de liminar no STF. Se o tribunal entender que a medida viola o princípio da cidadania plena ou a presunção de inocência, pode declará-la inconstitucional — mesmo após a sanção presidencial. A história mostra que o STF já derrubou leis semelhantes no passado, como a que proibia presos de receberem visitas.
Como posso saber se alguém que conheço teve o título cancelado?
O TSE disponibiliza um sistema online onde é possível consultar a situação do título com o nome completo e data de nascimento. Se a pessoa estiver presa provisoriamente, o sistema exibirá "Título Cancelado por Prisão Provisória". Famílias podem fazer essa consulta, mas não há notificação automática — é preciso buscar ativamente.